sábado, 17 de abril de 2010

CARTA AO PREFEITO

Senhor Prefeito do Distrito Federal
Eu sou um desses estranhos animais que têm por Habitat o Rio de Janeiro; ouvi-me,pois, com o devido respeito.
Sou um monstro de resistênciae um técnico em sobrevivência - pois carioca é, antes de tudo, um forte. Se às vezes saio do Rio por algum tempo para descansar de seus perigos e desconfortos (certa vez inventei até de ser correspondente de gerra, para ter um pouco de paz) a verdade é que sempre volto. Acostumei-me, assim, a viver perigosamente. Não sou covarde como esses equilibristas estrangeiros que passeiam sobre fios esntre edifícios. Vejo-os lá em cima, longe, dos ônibus e lotações, atravessando a rua pelos ares e murmuro: eu quero ver no chão.
Também não sou assustado como esse senhor deputado Tenório Cavalcante, que mora em Caxias e vive armado; moro bem no paralelo 38, entre Ipanema e Copacabana, e às vezes, nas caladas da noite, percorro desarmado várias boítes desta zona e permaneço horas dentro da penumbra entre cadeiras que esvoaçam e garrafas que se partem docemente na cabeça dos fiéis em torno. E eu vivo.
Ainda hoje tenho coragem bastante para tomar um ônibus ou memo um lotação e ir dentro dele até o centro da cidade. Vivo assim, dia a dia, noite a noite, isto que os historiadores do futuro, estupefatos, chamarão a batalha do Rio de Janeiro. Já fiz mesmo várias viagens na Central.
Eu sou bravo, senhor.
Sei também que não me resta nenhum direito terreno; respiro o ar dos escapamentos abertos e me banho até no Leblom, considerado um dos mais lindos esgotos do mundo; aspiro o perfume da cuva do Mourisco e a brisa da Lagoa e - sobrevivo. E compreendo que, embora vós administreis à maneira suíça, nós continuamos a viver à maneira carioca.
Eu é que não me queixo; já me aconteceu de escapar de morrer dentro de um táxi em uma tarde de inundação e ter o consolo de, chegando em casa, encontrar a torneira perfeitamente seca.
Prometestes, senhor, acabar em 30 dias com as inundações no Rio de Janeiro; todo o povo é testemunha desta promessa e de seu cumprimento: é que atacaste, senhor, o mal pela raiz, que são as chuvas. Parou de chover, medida excelente e digna de encômios.
Mas não é para dizer isso que vos escrevo. É para agradecer a providência que vossa administração tomou nestas últimas quatro noites, instalando uma esplêndida lua cheia em Copacabana. Não sei se fizestes adquirir na Suíça para nosso uso permanente, ou se é nacional. Talvez só possamos obter uma lua cheia definitiva reformando a Constituição e libertando Vargas.
Mas a verdade é que o luar sobre as ondas me consolou o peito. E eu andava muito precisado. Obrigado, senhor

Rio, junho de 1951.

(RUBEM BRAGA - 1956 - Rio De Janeiro - Ed. José Olympio)

Nenhum comentário:

Postar um comentário